A VERSÃO DOS CASTANHEIROS SOBRE O EXTRATIVISMO NO SUDESTE DO PARÁ
Arão Marques da Silva
Neste artigo, tenho a pretensão de fazer uma análise das relações sociais, políticas e econômicas, no Sudeste Paraense a partir do extrativismo da castanha que era norteado pelo aviamento. Assim, discorro sobre a formação das oligarquias locais da castanha e de seu poder político e econômico diante da sociedade agrária que vivia na região. Além disso, é realizada uma breve análise das relações de dominação existente nos castanhais, isso a partir da oralidade e da memória dos atores sociais que participaram da ocupação e que trabalharam com a extração da castanha na região. Faço ainda, uma abordagem sobre a importância sócio-econômica que a castanha teve para a Região, pois foi a partir do seu extrativismo e da exploração do caucho que a ocupação foi se consolidando no Sudeste do Pará. Na verdade, outras atividades econômicas ligadas ao extrativismo, como a extração mineral de cristal e diamante, também, possibilitaram a migração de homens e mulheres para as matas desta Região.
Palavras-Chaves: Extrativismo da castanha, aviamento, migração e memória.
1 Algumas considerações metodológicas sobre a pesquisa e a produção.
O trabalho científico em si é desafiante, mas a tarefa de refletir e analisar os fenômenos sócio-culturais no Sudeste do Pará, e neste caso, entender as relações e contradições praticadas durante o extrativismo da castanha exige do pesquisador uma intensa dedicação e reflexão, tendo de selecionar os instrumentos metodológicos mais adequados capazes de fazê-lo atingir os objetivos. Numa primeira observação sobre a temática ficou evidente que existia um arquivo vivo sobre o extrativismo da castanha na região em estudo. Sem me afasta muito, próximo de minha casa encontrei um castanheiro bem idoso que me contava histórias muito interessantes. A experiência com um grupo de pesquisa na UFPA como bolsista no Projeto “História, Trajetória, Memória, e Identidade Social: as faces do campesinato no Sudeste Paraense”, foram determinantes, também, nessa escolha. O trabalho de campo, as visitas, entrevistas e conversas informais me mostraram a importância da escolha da temática e da trilha a ser seguida na realização do estudo.
O Tema – Durante todo ano de 2005 percorremos vários municípios do Sudeste Paraense (São Domingos do Araguaia, Marabá, São João do Araguaia e Itupiranga), identificando castanheiros/camponeses e entrevistando. Nesse processo vimos que o extrativismo da castanha era muito presente nas falas dos informantes, porque era uma coisa muito recente e marcante nas suas vidas. Com isso, dedique-me em entender o processo de extração da castanha e suas implicações dentro de um contexto cheio de contradições, num período que compreende a formação das oligarquias da castanha até a decadência política e perda de visibilidade social.
As narrativas orais, presentes no trabalho são de indivíduos que se deslocaram para o Sudeste Paraense com o objetivo de trabalhar na extração do caucho, castanha, cristal e diamante. No decorrer do texto serão considerados os fatos históricos, socioeconômicos, políticos e culturais, desde a ocupação do espaço físico à reorganização do espaço social, assim como, a história, a trajetória e a memória, destes atores sociais na fronteira. ALBERTI, (2004, p. 25) entende que “... a História Oral permite o estudo de padrões de socialização e de trajetórias de indivíduos e grupos pertencentes a diferentes camadas sociais, gerações, sexos profissões”.
O Percurso Metodológico – Fiz a opção de trabalhar com a oralidade e a memória, privilegiando com isso, as narrativas orais. Estas representam uma versão e possibilitam a compreensão dessas relações a partir das falas das camadas populares. Assim, faço uso das fontes orais, como procedimentos metodológicos de pesquisa, por entender que elas possibilitam uma nova interpretação da história e dão sentidos as fontes escritas. Oralidade e a memória são ferramentas de pesquisa relevante para a ressignificação das dinâmicas sociais, econômicas e culturais, sendo, também, relevantes para as Ciências Sociais. Conforme FERREIRA & AMADO, (2005, p. 17) “...a História Oral constitui-se pela confluência; tal como uma encruzilhada de caminhos, entre as demais Ciências Sociais como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia”. Para FREITAS, (2002, p. 47) “...a História Oral fornece documentação para reconstituir o passado recente”.
A memória é um fenômeno coletivo e social, é algo construído pela coletividade e que é mutável, entretanto, existem elementos da memória que são imutáveis. “A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora”. (E.BOSI, 1994, p. 47). As pessoas selecionam fatos que consideram relevantes e registram recordando quando são estimulados. As pessoas que entrevistamos, ao serem estimuladas recordavam aquilo que havia selecionado na memória. “A função da memória é conservar o passado do indivíduo na forma mais apropriada a ele. O material indiferente é descartado, o desagradável alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida, (...) e no fim formou-se um quadro total, novo sem o menor desejo consciente de falsifica-lo”. (E.BOSI, 1994, p. 68). A memória dos indivíduos é seletiva, as pessoas selecionam datas e fatos históricos que consideram relevantes e registram tudo, passando, a partir de então, a lembrar, a recordar os fatos e acontecimentos que consideram relevantes. Para E.BOSI, (1994, p. 55) “...lembrar não é reviver o passado, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado”. A lembrança é neste caso como a continuação de um passado distante. Portanto, neste caso, existe uma interação entre memória individual e a memória coletiva quando o passado é repensando, e as imagens e acontecimentos deste passado são ressignificados. “...Na memória de um grupo, as lembranças dos acontecimentos e as experiências são resultado das relações com os mais próximos do grupo”(HALBWACHS, 2004, p. 49).
A construção de uma memória coletiva pode ocorrer de forma consciente ou de forma inconsciente, no caso dos castanheiros, eles foram selecionaram fatos e acontecimentos que consideram relevantes e ao longo do tempo dando significados a estes fatos. Para POLLACK, (1989, p. 10) “...as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas”. Somente através do olhar social do pesquisador é possível perceber que as narrativas orais de homens e mulheres que fizeram parte do processo de ocupação do Sudeste Paraense, e do extrativismo da castanha são experiências de um passado repensando, e que “...é o olhar e não o olho que informa a existência mundana das coisas. O olho é natural, olhar é socialmente desenvolvido”. (TEVES, IN: FERREIRA, 2002, p. 55).
A entrevista – Para que a entrevista seja realizada com sucesso é necessário criar uma relação de confiança do pesquisador com a pessoa que vai concedê-la. No primeiro encontro, é preciso estabelecer uma relação de confiança entre as partes. É neste primeiro momento que agendamos a entrevista. Depois disto, já com o esquema da entrevista montado voltamos na data marcada para realizá-la. A disponibilidade, o local e o ambiente harmonioso criado com entrevistado são elementos fundamentais para uma boa entrevista. Antes mesmo de começar a entrevista com os narradores, é importante prestamos alguns esclarecimentos para que nosso entrevistado possa entender que as histórias registradas na sua memória são relevantes para entendemos as relações de trabalho, bem como, as contradições dentro dos castanhais. No início houve uma certa relutância por parte de alguns narradores, mas depois dos esclarecimentos começamos a entrevista.
No caso do narrador principal deste trabalho, a entrevista foi divida em partes, sendo que no primeiro momento, ele contou-me com foi sua infância pobre na região, perdendo a mãe e o pai antes de completar dez anos de idade. As lembranças da infância emocionaram o narrador, em seguida ele começa a descrever o trabalho nos castanhais da região. Houve em diversos momentos da entrevista, mudança na entonação da voz, o esquecimento, e o silêncio do narrador. Neste caso, eram as lembranças do passado que estavam agindo sobre sua memória. No segundo momento da entrevista retornei ao narrador para que alguns pontos da entrevista que não haviam ficado claros pudessem ser esclarecidos, e isso foi muito enriquecedor, pois acabei realizando uma outra entrevista com duas horas de duração, sendo que na primeira havíamos conversado com o castanheiro por mais de três horas. Em vários momentos enquanto estava produzindo este artigo, voltei a residência deste narrador e conversamos sobre o trabalho nos castanhais, e sobre as oligarquias políticas deste período, a violência nos castanhais, a navegação nos rios e igarapés da região, entre outros assuntos relacionados com a extração da castanha.
As demais entrevistas foram realizadas pela equipe de pesquisadores do PROINT, sendo que houve um momento especial em que reunimos três camponeses num mesmo espaço, e estes concederam a entrevista, um após o outro, e nos momentos em que o companheiro não conseguia lembrar de um fato que para o grupo de pesquisadores era relevante, o outro camponês tomava a palavra, este haviam selecionado na memória na coletiva e recordavam dos acontecimentos quando estimulados. Fizemos entrevistas com mulheres que também, presenciaram as lutas pela posse da terra nos castanhais da região. Durante as entrevistas, em determinados momentos os narradores estavam contando casos que aconteceram com alguém muito próximo, ou com eles mesmos, havendo com isso, o silenciamento, emoção e a não recordação de alguns fatos. Neste caso, observa-se que a maneira com que o ser humano esquece algo do passado está relacionada, com a maneira com que o estes acontecimentos são conservados na memória. MONTENEGRO (2003, p. 151) entende que “...a memória pode vir à tona através dos mais diversos estímulos e desencadeiam processos de associação e de rememoração”.
Transcrição e a análise das entrevistas – Essa é uma tarefa que requer paciente e disciplina acadêmica, sendo necessário ouvir a entrevista pelo menos duas vezes. Ao ouvir uma narrativa oral, nos deparamos com a entonação de voz do narrador, com a lentidão da fala em determinados momentos da entrevista, com rapidez, repetições e risos, por isso, é necessário privilegiar a escuta da entrevista pelo menos duas vezes antes de começamos a transcrição. A transcrição é uma criação escrita e/ou interpretação do texto o mais próximo possível do discurso do outro, ou seja, é uma reprodução escrita da narrativa oral o mais fiel possível sem a traição da oralidade dos narradores.Com relação à análise das entrevistas, optei em selecionar as partes que considero relevante para entender as dinâmicas socioeconômicas da região. Na seleção de trecho das entrevistas, foram recortados depoimentos que testemunhavam as relações de trabalho no extrativismo da castanha e suas contradições. Em alguns momentos, optei em fazer uma interpretação da narrativa por entender que não havia a necessidade de transcrever o discurso na integra, pois além de ser longo era repetitivo. No entanto, a maioria dos depoimentos foram transcritos na integra para o texto, sendo que fiz apenas alguns considerações ao final da falas dos narradores. Durante o período que estive ligado ao PROINT, em vários momentos fizemos a discussão das entrevistas gravadas e transcrita. Estes momentos foram importantes para a interpretação e análise do discurso dos narradores, bem como, me mostraram o norte para produção deste artigo.
2 O extrativismo nos castanhais.
O trabalho no castanhal era muito difícil. No início do mês de dezembro os castanheiros se preparavam para a coleta da castanha. Essa preparação prescindia de organizar a viagem, adquirir os instrumentos necessários para a cata da castanha : rifle ou espingarda com munição, paneiro , facão, faca, lamparina , poronga , vasilhames, vestimentas, redes, cobertores, sacos , pé-de-bode , fumo, rancho, (carne-seca, arroz, farinha, açúcar, café, querosene, fósforo, etc.), para levar ao castanhal e outro rancho para deixar com a família (esposa e filhos) que fica na cidade.
Os castanheiros eram trabalhadores muitos humildes, e por isso necessitavam de alguém que bancassem essas despesas iniciais, para serem pagas com a produção de castanha. É nessa relação que se realiza o chamado aviamento. Normalmente o dono de um estabelecimento comercial fornecia esse material e ainda algum recurso em dinheiro para que o castanheiro pudesse se preparar e ir para a mata. Depois de serem aviados em Marabá ou outro município, saem rumo às colocações, como diz Seu Cícero: “isso no sair das chuvas do final de novembro e início de dezembro”. Conta ainda que “no dia 8 de dezembro todos os castanheiros já estavam nas suas colocações , comendo fígado de jabota no leite da castanha”. Ainda, segundo ele, era muito perigoso coletar castanha neste mês devido à queda dos frutos que podem causar acidentes.
A memória dos castanheiros entrevistados a saída para os castanhais em Marabá era marcada por festas, com direito a fogos de artifício e tiros de rifles. Os homens deixavam a cidade em direção ao castanhal em canoas e batelões, isso antes do uso do barco a motor, sendo que, em alguns castanhais, era possível chegar a pé. Quando os igarapés e rios estavam secos, os castanheiros eram obrigados a caminhar longo percurso na mata, até chegar a colocação de destino. Caso contrário, iam de canoa. A maior parte dos castanhais ficava distante da cidade, o que os obrigava a permanecerem durante meses isolados na mata, e distante da família. A vida nos castanhais era marcada pela chuva que caia dia e noite e pela solidão da mata. A narrativa de Seu Cícero afirma que nas colocações, em geral, ficavam dois ou três castanheiros em cada barraco, eram poucas as colocações onde trabalhavam num barraco cinco homens. Os castanheiros responsáveis pela colocação cuidavam logo ao chegar de construir um barraco de pau-a-pique e cobri-lo com palha de ubim ou babaçu, para ali se abrigar das chuvas. Ali no mato o grupo era responsável pelo preparo da alimentação. Poucos levavam a família para mata, isso devido os perigos existentes, como o ataque de índios, a malária, e o acidente com animais peçonhentos, entre outros. Seu Cícero nos contou ainda, que a alimentação do castanheiro era bem peculiar. Fazia parte da culinária desse trabalhador caça (tatu, cutia, paca, macaco, mutum, caititu), normalmente condimentada com leite de castanha e óleo de coco babaçu. A mata rica e diversa se encarregava de oferecer muitos frutos como: o cupu que era servido no leite da castanha, ralada na paxiúba. , o bacuri , o piqui entre outros. A farinha de puba , não podia faltar. Os castanheiros passavam o dia trabalhando na mata, catando ou cortando castanha, retornavam ao barraco ao entardecer, quando iam preparar a alimentação. Ao raiar do dia, o castanheiro deixa sua barraca depois de quebrar o jejum, sob a chuva ou sem ela. Ele preocupado com fazer uma boa safra, madruga com seu paneiro nas costas para catar os frutos com o pé-de-cabra, . Era comum esse trabalhador andar armado com terçado, faca, espingarda, catando ouriços. A arma era duplamente útil: para se proteger do ataque de animais selvagens e índios, como para caçar paca, tatu, cutia, para garantir o alimento. O trabalho consistia em juntar os ouriços encontrados, transportá-los num paneiro e amontoá-los num lugar afastado das castanheiras para posteriormente cortar e retirar as amêndoas. A castanha era retirada do castanhal carregada nas costas pelos castanheiros, ou em mulas, comandadas por tropeiros.
Dentro dos castanhais havia uma divisão do trabalho, os trabalhadores eram divididos em categorias, segundo a função que exerciam. Nesse aspecto, EMMI, (1999, p. 70-72) afirma que:
O processo de trabalho da castanha envolve as seguintes categorias: castanheiro, (cujo trabalho consiste na coleta e quebra dos ouriços e no empilhamento das amêndoas no depósito), (...) tropeiro, (responsável pelo transporte da castanha em burros até as margens do rio, igarapé ou estrada, de onde era embarcada para Marabá), (...) lavador, (tinha a tarefa de lavrar e separar a castanha boa da podre), barqueiro, (piloto de barcos, antes do uso de barco com motor a diesel, o transporte era feito em batelões que eram movidos pela força humana), (...) cantineiro, encarregado ou escrivão, empreiteiro ou gerente, responsável pelo contrato de trabalhadores para limpar caminhos e igarapés por onde a castanha seria transportada, e pela limpeza e conservação de pastagem e roçados, entre outras atividades concernentes a função que exercia”.
Vale a pena enfatizar um personagem importante do processo, que é chamado de trabalhador de condição , alguém que é de confiança do patrão, responsável pelo o barracão, uma espécie de gerente que abastece os castanheiros dos mantimentos necessários, e recebe destes a castanha coletada. A narrativa de seu Cícero mostra que havia uma cadeia de relações que garantia a funcionalidade da produção de castanha, nos moldes estabelecidos pelo sistema de aviamento:
Quando o cara ia extrair a castanha do patrão, porque os primeiros castanhais eram arrendados, e ai, arranjava um meia praça. Eles davam o vencimento, o dinheiro pra meia praça, aquele que ia tomar de conta do castanhal, pra aviar. Com aquele dinheiro, comprar mercadoria, como farinha, a roupa, facão, foice, botinha, aquelas coisas que eram necessária né. E lá o cabra distribuía. Quando era no fim da safra que ele extraia a castanha toda, fazia as entrega, ia extraindo e botando nos motor e o motor descendo pra cá. E aí o patrão que tava aqui ia recebendo e vendendo pro Nagib Mutran, pro Jorge Mutran, pro Zezé Mutran.
O castanheiro, no final da safra ia fazer o acerto com o patrão. Este tinha anotado em seu livro caixa todas as entradas de castanha e saída dos produtos, seja gêneros alimentícios, dinheiro adiantado e outros. Quando o castanheiro conseguia saldo, poderia receber , porém muitos, ficavam devendo, e o sonho de fazer uma boa safra, transformava-se em frustração. Os donos de castanhais montavam uma espécie de regime policial nos castanhais, onde homens armados montavam guarda para garantir os largos lucros e evitar a possível fuga dos castanheiros que não conseguiram quitar a dívida. Era comum castanheiros fugirem sem ter pagado a conta no barracão. Mesmo com o regime policial existente nos castanhais, alguns ainda conseguiam escapar. Esse fato mostra que a vida do castanheiro era marcada por forte repressão e violência, além do árduo trabalho no interior dos castanhais.
3 Do escambo ao aviamento: a exploração do castanheiro pelo sistema de aviamento.
O escambo foi um dos principais métodos que os colonizadores utilizaram a fim de estabelecer contato com os povos que habitavam o Continente Americano. A prática do escambo se traduzia na troca de produtos florestais (borracha, pele de animais, castanha e outros) por outros que as famílias extrativistas necessitavam (instrumentos de trabalho, remédios, alimentos, etc,). O dinheiro ou a moeda como um valor de troca equivalente ao produto pretendido, não era conhecido entre as populações tradicionais, como os indígenas e outros. Na prática, os negócios realizados com os regionais, aconteciam sem o uso do dinheiro, porém baseada em valores como a necessidade, a beleza, a significação para essas populações.
Para Tupiassu, citado por SANTOS, (1980, p. 158) “o escambo e o aviamento tratam-se de uma prática que desempenhou um papel articulador e sustentador de toda a estrutura social na Amazônia, envolvendo o caboclo Amazônico com a sociedade nacional”. Segundo o mesmo autor (1980, p. 156-157) os colonos portugueses não utilizavam o dinheiro na Amazônia pelo fato dos índios e caboclos não terem conhecimento do uso dessa espécie. Afirma ainda que somente em 1749, o dinheiro fora utilizado pela primeira vez, numa quantia equivalente a 55 contos, durante uma negociação. A partir de então, virou regra, sendo que quem se recusasse e receber dinheiro durante a comercialização de produtos florestais, poderia ser açoitado.
Na Amazônia, desde o período Colonial, o escambo representou uma relação econômica forte, no entanto ela foi se modificando, e a moeda foi tomando visibilidade na relação de comércio na Região. Assim, o cacau, a castanha, a borracha, dentre outros produtos extraídos e comercializados, passam a ter valor monetário, devido sua importância no mercado da época. No século XVIII o uso do dinheiro já tinha sido difundido na região. O fato das populações locais não conhecerem o dinheiro e, portanto, não adotarem-no na relação de comércio, contribuiu para que o escambo enquanto modelo vigorasse durante muito tempo na Amazônia. Essa prática de negócio: a troca, reforçou a relação de dependência do trabalhador com o patrão, uma vez que dá origem a uma relação paternalista baseada na prestação de favores. O isolamento do trabalhador e as trocas comerciais continuaram por um longo período, determinando um modelo de economia no interior da Amazônia que se fundamentava no escambo. O escambo determinou de certa maneira, as bases econômicas do novo sistema: o aviamento.
O aviamento neste caso refere-se a uma relação social impregnada de contradições e de extrema exploração, onde se cria entre as partes envolvidas, submissão e dependência capaz de produzir uma dívida fictícia entre um comerciante e um trabalhador extrativista qualquer. No sistema de aviamento raramente se utiliza dinheiro, pois os negócios são realizados através do escambo. No aviamento, o extrator poderia ser um castanheiro, pescador, seringueiro, mariscador, castanheiro, ou qualquer outra categoria de trabalhador existente na Amazônia que estivesse ligada ao barracão ou as casas aviadoras. (MACGRATH, 1999, p. 236-237).
Com o avanço das relações econômicas, o escambo foi substituído pelo aviamento, principalmente depois da vinda de imigrantes nordestinos para a Amazônia para trabalhar na extração da borracha, isso porque as relações de produção implantadas aqui, agora vão se organizando em torno das casas aviadoras que passaram a fornecer mercadorias aos extrativistas. Assim, é descrita a relação de trabalho que eram vivenciadas na Amazônia por àqueles que estavam submetidos ao aviamento:
Começava sempre a trabalhar endividado, pois de via obrigavam-no a reembolsar os gastos com a totalidade ou parte da viagem, com os instrumentos de trabalho e outras despesas de instalação. Para alimentar-se dependia do suprimento que, em regime de estrito monopólio, realizava o mesmo empresário com o qual estava endividando e que lhe comprava o produto. As grandes distâncias e a precariedade de sua situação financeira reduziam-no a um regime de servidão. Entre as longas caminhadas na floresta e a solidão das cabanas rudimentares onde habitava, esgotava-se sua vida, num isolamento que talvez nenhum outro sistema econômico haja imposto ao homem. Demais, os perigos da floresta e a insalubridade do meio encurtavam sua vida de trabalho. (FURTADO, 2001, p. 134).
No sistema de aviamento o trabalhador fica preso à dívida construída no barracão. Existe nesta forma de exploração uma relação paternalista de exploração, ou seja, as relações de exploração que se estabeleciam nem sempre apareciam em sua forma real; elas são em muitas das vezes orientadas pelas relações de caráter paternalistas. O sistema de aviamento se fundamenta no “engano” dos homens que trabalhavam no extrativismo; caracterizava-se, também, pela forte relação de parentesco e compadrio, o que possibilitava a espoliação ainda maior do trabalhador. Aviar é fornecer mercadorias, créditos, bens de consumo e instrumentos de trabalho, medicamentos e dinheiro para ser pago com a produção recolhida na época da safra. O sistema de aviamento foi um dos meios que o sistema capitalista de produção, encontrou para se apropriar do volume de castanha extraído nas matas da Amazônia. Santos descreve a ação do capitalismo na Amazônia da seguinte maneira:
O capitalismo e seus agentes executam com completa insensibilidade as operações reputados necessárias contra as sociedades cujo aparelho de defesa seja frágil. Se é preciso, para atingir os alvos do regime, lançar mão dos meios ilegítimos, as normas mais elementares do convívio humano passam a ser violadas. Se é preciso injustiçar, haverá injustiças; se é preciso derrubar valores de autopreservação, eles serão derrubados; se é preciso matar, haverá mortes; se é preciso saquear, haverá saques, e assim por diante. (SANTOS, 1980, p. 161).
Com vimos, o sistema capitalista utilizou os meios mais rústicos a fim de promover a espoliação de seringueiros e castanheiros. “A ética que o sistema capitalista utilizou nos castanhais e seringais da Amazônia, fundamenta-se no desejo de acumulação cada vez maior de capital, onde o forte domina o fraco. Isso possibilitou o enriquecimento de uma pequena parcela da população Amazônica, enquanto que o restante vivia na mais absoluta miséria”. (SANTOS, 1980, p. 162). O sistema de aviamento surge da evolução do escambo, que de certa maneira deu os elementos necessários à estruturação do sistema de escravidão por dívida. Essa transformação se materializou de forma lenta, durante o período da borracha, e fora transferido com a mesma estrutura, para os castanhais. Essa relação social se consolidou e predominou de tal maneira, que não é estranho encontrar ainda hoje situações semelhantes no nas fazendas e carvoarias do Sudeste Paraense. O sistema de aviamento se estabelece nos castanhais praticamente nos mesmos moldes com que agiam os compradores de caucho. Nos seringais e castanhais da Amazônia as relações de trabalho foram marcadas pela servidão por dívida, onde os trabalhadores ficavam presos ao comprador do produto de seu trabalho pela dívida contraída no ato do aviamento.
LOUREIRO, (1992, p. 29), fala da existência de uma cadeia de relações com papéis diferenciados, garantindo a funcionalidade do sistema. Assim descreve: “...o seringueiro era aviado pelo barracão; o barracão era aviado por casas exportadoras; as casas exportadoras eram financiadas por bancos estrangeiros. Este sistema não era exclusivo da borracha e nem acabou naquela época. Assim se comercializava até poucos anos atrás, a castanha do Pará e outros produtos. O barracão aviava, isto é, fornecia a ele mercadorias. Anotava a dívida, descontava o preço dos produtos vendidos e, se sobrasse alguma coisa, pagava um dinheirinho”. Vale afirmar que havia uma supervalorização dos produtos aviados e contraditoriamente uma desvalorização do produto do extrativismo. Isso explica uma condição de constante endividamento do castanheiro para com o dono do castanhal. No geral o volume produzido durante a safra não era suficiente para quitar a dívida, não conseguindo portanto, tirar saldo, e tendo que continuar se submetendo ao domínio do mesmo patrão. Para os extrativistas, os produtos que eram extraídos da natureza e entregues ao comerciante, não recebiam o devido valor. Assim, o trabalhador vê seu trabalho e o produto de seu trabalho sendo desvalorizado pelo sistema de aviamento, a ponto de enfrentar uma situação humilhante onde ele trabalha apenas para pagar a alimentação. A relação era de tamanha exploração a ponto de um produto ser supervalorizado, chegando a custar cinco vezes mais do que o praticado no comércio da cidade de Marabá. Por esse motivo, o castanheiro é um indivíduo que se caracteriza pela sua extrema pobreza, quase impossibilitado de melhorar de vida.
LAGENEST, citado por EMMI, (1999, p. 73) assinala que “...o pagamento do castanheiro é decidido sem relação alguma com o lucro real do patrão. Este pode ganhar 100%, 200%, 300% até 500%. Qualquer que seja o lucro, o castanheiro terá que se conformar com um salário miserável, já roído pelo empréstimo inicial, pelo aluguel do rifle e pelas despesas diárias na mata”. A exploração do trabalhador pelo sistema de aviamento não se dava apenas nesse nível. As medidas e pesos também eram fraudulentos, sendo isso, uma outra maneira que os comerciantes da castanha encontravam para fraudar seus trabalhadores, mantendo-os, assim preso ao barracão. Em Marabá, os compradores de castanha, tinham uma medida que tornava, ainda mais elevada a exploração dos trabalhadores. Os donos de barracão fraudava-nos duplamente: na supervalorização das mercadorias que vendiam e na hora de medir a castanha, como afirma esta narrativa:
Numa medida bruta que eles mediam aqui em Marabá. Faziam um tal de hectolitro. O velho Nagib, o Jorge Mutran, o Benedito Mutran.(...) Ai, oh! Chapava ali o hectolitro, o cabra fazia um buraquim aqui no meio puxava a castanha assim pra cá. Aí o velho Nagib ficava ali por longe com as mãos pra trás. Aquela cabeça mostra. Êh! Seu Nagib! Essa medida tá demais. Desse jeito esse tanto de castanha não vai dá nem cinco seu Nagib! Manere mais essa medida, ta demais.
Na narrativa vimos, como se processava a exploração do castanheiro, tanto na medida do hectolitro, como quando eram aviados ao ir para a mata corta a castanha. Vale lembra que a medida padrão de 1 hectolitro é igual a 100 litros, mas na contagem do comprador e aviador, era muito mais, como afirma o narrador:
Um hectolitro que eles mediam aqui em Marabá, quando chegava em Belém dava quase dois. O Índio do Brasil pegava 300 hectolitros de castanha na medida daqui. Quando chegava em Belém, que o cabra ia medir. 300 hectolitros de castanha dava 450, 480. Rapaz! esse povo inricava de uma hora pra outra, mais dum minuto pra outro viu; a troco do roubo.
A espoliação era tamanha a ponto de 1 hectolitro de castanha em Marabá, ao ser medido em Belém dava um hectolitro e meio. A exploração do trabalho do castanheiro, o roubo na medida, o engano, o uso da violência física, estavam presente em todas as etapas da produção da castanha, desde a extração até a comercialização. EMMI, (1999, p. 73), citando LAGENEST afirma que “... a medida oficial do hectolitro não é observada pelo patrão. Ele considera como hectolitro uma medida que dá realmente 120 a 130 litros. Em julho de 1945 ficou provado que barcos carregados de Marabá, com 3.109 hectolitros e pagos aos castanheiros descarregavam no porto de chegada 3.694 hectolitros, Isto é, 585 hectolitros a mais do que foi embarcado”. É por isso que poucos castanheiros conseguiam saldo ao final da safra depois do acerto no barracão. Vejamos a narrativa:
E o dinheiro que eles ganhavam naquele tempo, aqueles que pagavam a conta, que tinha saldo. O cara tinha uma castanha pra dez hectolitros, quando acabava de medir, dava sete, oito, é assim, dois ia imbora só na cabeça das caixas, porque lá dentro das matas eles mediam nas caixas e aqui em Marabá nos depósitos eles mediam no hectolitro.
Havia ainda aqueles que ao final da safra continuavam trabalhando para o dono do castanhal na limpeza de igarapés, no preparo da terra para o plantio do capim, outros roçando pasto, dentre outras atividades. O sistema de aviamento possibilitava aos donos de castanhais o controle absoluto sobre seus trabalhadores ao ponto destes ficarem presos ao barracão pela dívida. Assim um entrevistado descreve a exploração a partir das relações que o sistema de aviamento faz com quem trabalha nos castanhais do Sudeste Paraense:
E no fim das contas, (safra) ele vem ajustar conta. A maioria dos pião, com a mercadoria cara demais lá na mata, a maioria dos coitado, ficavam devendo, iam imbora sem nada! Olha! trabalhava só pela comida. Outros ficava no negócio das grama (pasto), que era antes da castanha. A gente fazia na derrubada e quando terminava de plantar o milho e o arroz.
Durante esse período, existiam outras formas de controle, além daquelas do puro extrativismo na época da safra. A política dos acordos com os poderes constituídos, especialmente com o governo do Estado, era outra delas. Esta, garantia à apropriação de grande parte dos castanhais públicos pelas elites locais, encarregadas do controle da população. A exploração do castanheiro e a apropriação da castanha produzida, garantiam altos lucros e a riqueza daqueles que controlavam a produção e comercialização da castanha. Um dos nossos entrevistado lembra de um episódio que explica bem essa apropriação e enriquecimento das oligarquias. Ele narra uma conversa entre um comerciante oligarca da época, que recebera a notícia de que um de seus motores havia sido queimado na época da campanha para prefeito de Marabá:
Esse velho Nagib! tinha dois motor aí: um por nome “Coronel Luz”, que era o nome dum genro dele, [...]. E tinha o outro que eles botaram o nome “Guido”. Ai, quando foi um ano, no tempo de política, eles andavam passeando com o motorzim todo infeitado, desceram fazendo política o motorzim todo imbandeirado, cheio de bandeira e ai quando vinha subindo de lá pra cá, quando chegaram bem de junto dos inflamável nessa passeata, tratando de política, quando aconteceu um circuito lá, que é certo que o motor incêndiou. Ardeu todim, acho que escapou mal a máquina. E ai veio gente de lá dá a noticia pro velho Nagib. Ei seu Nagib! O “Guido” incendiou, queimou todo. Você perdeu seu motor. Queimou todo. Ai ele disse: Olha mando fazer outro, o “Guido” foi comprado com cabeça de hectolitro viu, (risos). O roubo era tão grande ....
Como vimos na narrativa acima, o sistema de aviamento juntamente com as fraudes na medida do hectolitro, foram mecanismos utilizados pelos comerciantes de castanha em Marabá, para o enriquecimento rápido. Enquanto o castanheiro estava na mata extraindo castanha, a família dele ficava na cidade sendo abastecida do que fosse necessário, pelo dono do castanhal, para o qual trabalhava. O nível exploração feito sobre as pessoas que trabalhavam com o extrativismo da castanha, era muito elevado de tal maneira que para continuar subsistindo os trabalhadores eram obrigados a continuar vendendo sua força de trabalho mesmo fora da safra de castanha, com o intuito de quitar seu débito, o que é uma violação ao direito de liberdade do castanheiro. O sistema capitalista no Sudeste Paraense, bem como na Amazônia, apropria-se de práticas paternalistas para explorar com maior intensidade os homens e mulheres que viviam do extrativismo da castanha. EMMI, (1999, p. 73-74) assinala que “...as relações de caráter paternalista se davam entre dono de castanhal e encarregados, em que aparecia a figura do bom patrão e do mau patrão”. O paternalismo representou uma prática da empresa extrativa da castanha nas relações de trabalho para se apropriar da produção através da exploração dos castanheiros, promovendo o enriquecimento de uma pequena minoria de comerciantes e políticos locais.
4 A produção de castanha e a formação das oligarquias no Sudeste Paraense.
O extrativismo vegetal no Sudeste Paraense e na Amazônia Oriental remonta o período Colonial, quando eram retirados da floresta equatorial os mais diversos produtos como: a borracha, a castanha, o guaraná, o cumarú, as madeiras, o urucu, a salsaparrilha, a piassava, óleo de copaíba, andiroba, puxuri, urucubá, patauá, etc. A borracha e a castanha são os produtos florestais que ganharam maior importância devido seu valor econômico. A castanha por exemplo, é comercializada pela primeira vez em 1800 na Europa com o nome de castanha do Maranhão, isso por ter sido embarcada para o exterior pelo porto de São Luis no Estado do Maranhão. Mais tarde, é que ela passa a ser denominada como castanha do Pará. (SANTOS, 1980, p.182).
A partir da década de 1920 a castanha produzida no Sudeste Paraense passa a ganhar dinamismo econômico, sendo que neste mesmo período, a economia da cidade de Marabá já gravitava em torno do extrativismo. Segundo PETIT, (2003, p. 190) “...a castanha dos municípios do Médio Tocantins, representou em 1930, 74.301 hectolitros, e a castanha que Belém recebeu neste mesmo ano foram 113.446 hectolitros”. Nas duas primeiras décadas do século XX, a produção e exportação de castanha de Marabá já vinha se destacando e substituindo a borracha, que estava em decadência na Amazônia. A castanha se torna um marco significativo na história da ocupação e formação social do Sudeste do Pará. A sua exploração foi em grande medida responsável pela migração que levava centenas de homens e mulheres aos castanhais. Para SANTOS, (1980, p. 183-184) a maior concentração de castanheiras foi encontrada nas florestas equatorial do Sudeste Paraense, onde a extração vegetal remonta o início de século XIX, quando a coleta era feita para a alimentação da população e de animais domésticos. Ainda para o mesmo autor, no período de maior extração e comercialização da borracha, a castanha já era exportada em pequenas quantidades, mas somente depois da crise na produção gomífera é que ela ganha destaque no mercado internacional.
O extrativismo da castanha foi uma das principais fontes de renda de homens e mulheres que habitavam o Sudeste Paraense. As atividades econômicas desenvolvidas aqui levavam estes atores a adquirirem em pouco tempo uma quantidade de dinheiro, isso quando o sistema de aviamento permitia. O aventureiro nordestino que migrava para cá no período sazonal da safra, levaria mais tempo para conseguir a mesma quantia na sua terra. Este via nas atividades extrativas da castanha e do garimpo; a possibilidade de ganho de recursos para auxiliar nas despesas da família. O extrativismo do diamante foi outra atividade importante na Região, sendo observado por seu Cícero que o comerciante de castanhal e dono de castanha, Plínho Pinheiro se capitalizou a partir da compra e venda de diamante nos garimpos das margens dos rios Tocantins e Araguaia. Vejamos a narrativa:
O Plínho Pinheiro era Faisqueiro , era um comprador de diamante nos garimpos de Ipixuna, nas Pacas, Urubu, Urubu Grande, Urubuzim. Na cachoeira de Santa Isabel, tudo tinha garimpo de diamante. O faísqueiro andava no beiradão. (...) E aí o velho Plínho, se sentiu um pouco mais folgado com esse dinheiro. O Velho Plínho foi à Belém e arrendou o castanhal por tantos anos né. E ai ele ficou trabalhando, botando gente, trabalhando, e aí ele começou a fazer abertura, botar grandes roças, gramar de arroz, de milho, e a jogar a semente de capim. E foi gramando. Outro ano ele mandava botar 8 alqueires de mata abaixo de novo .
Como é observado na narrativa, na região o extrativismo do diamante e da castanha na década de 1950 eram importantes atividades econômicas, neste mesmo período da história, inclusive já havia a introdução da pecuária. Ainda, na década de 1950, as pessoas que ocupavam às margens do rio Tocantins migravam para cá tanto para trabalhar na extração da castanha, como na exploração de garimpo de cristal e diamante. Na memória de um camponês e castanheiro de São Domingos do Araguaia; a castanha e o garimpo eram as atividades de maior destaque. Assim ele narra:
Porque aqui era garimpo de cristal e castanha. Castanha dá muito dinheiro. Eu fazia 18 mil conto em castanha. Naquele tempo era 18 milhão de cruzeiro. Dava pra comprar muito saco de arróis. Naquele tempo o povo mais vivia era da castanha. A castanha dava dinheiro e o arróis era baratim, ninguém queria mexer com roça. A maioria destes castanhais era só a matona aí doida, hoje tá tudo devastido . Onde a gente tirava castanha está tudo devastido. Pru Nelito Almeida trabalhei seis anu 55, 56, 57, 58, 59, 60 e 61 fui pra cá. Neste tempo ele tinha muitos castanhais. O Nelito era o dono dos maiores castanhais da região. Eles botavam os encarregados lá. Em outubro, novembro era muita castanha. Os castanheiros entravam pra dentro .
Essa narrativa reafirma o império do extrativismo no Sudeste do Pará, no auge da exploração da castanha. Em comparação com o arroz, a castanha tinha mais valor. A floresta imperiosa ainda não havia sido desmatamento, no entanto, boa parte das terras já havia sido concentrada nas mãos das oligarquias locais e que estavam investindo na criação de gado.
Na década de 1960, principalmente, em São Domingos do Araguaia, já havia uma produção significativa de cereais. O filho de um camponês entrevistado naquela cidade, explica que a participação da agricultura “na época que chegamos aqui trabalha só de roça. Era 80 linha, até 120 linha, eu lembro, aconteceu.” Algumas das famílias camponesas que não vendiam sua força de trabalho aos donos de castanhais botavam grandes roças, produziam, principalmente, arroz e farinha que eram vendidas aos comerciantes de castanha de Marabá.
O Sudeste Paraense daquela época era uma região dinâmica, detalhada as oligarquias da castanha, havendo uma produção extrativista nos castanhais públicos e aforados, áreas indígenas, ocupações e outras. A Região estava sendo dividida, já com início de desmatamento para a criação de gado bovino e marcando a divisão entre os diversos atores ocupantes do espaço. A agricultura vinha se destacando como uma das fontes de renda de algumas famílias que moravam na Região, sendo o arroz, juntamente com a farinha, os principais produtos desta agricultura. Os comerciantes da cidade de Marabá compravam boa parte da produção dos camponeses de São Domingos do Araguaia, e revendiam por um preço superfaturado aos castanheiros. Vejamos a narrativa: “Plantava só mandioca pra fazer farinha pra fornecer aos castanheiros. Era arroz e mandioca. A maior parte era farinha pra fornecer pros pontos de castanha. Primeiro era só mandioca que plantavam” . Na memória desse camponês, nesse período plantava, principalmente, arroz e mandioca e essa produção era voltada para atender a demanda dos castanhais. Isso mostra que existia uma conexão entre a produção da lavoura branca e a economia da castanha. É importante colocar que estas famílias também tiveram uma relação de submissão ao aviamento. A diferença é que podiam vender a castanha a qualquer comerciante, e quando quisessem, como nos informou o Seu Antonio Severino. Esses tinham a liberdade de comercialização. Seu Zé Patrício afirmou em entrevista que “...os camponeses que viviam apenas do seu roçado, tinham o direito de entrar nos castanhais municipais e retirar a castanha apenas para o mantimento” . Estes não viviam somente do extrativismo da castanha pois cultivavam roça, não necessitando se submeter ao domínio do barracão. Vejamos a narrativa:
Mas também tinha a extração da castanha a gente tirava. Era uma área que era municipal, como é que se diz? Então a gente tirava a castanha. Toda aquela castanha era da gente. A gente vendia prus atravessador daqui de São Domingo, que vendiam pros pessoal de Belém. Ninguém tinha castanhal. Só o direito de tirar o do mantido . Aqueles que botava roça pequena colhiam muito castanha. Os que botava roça grande como eu, eram quatro, cinco hectolitros.
Essa narrativa ilustra bem a perfeita combinação de atividades econômicas: extrativismo e roça. Em função das dificuldades financeiras encontradas as famílias camponesas compravam fiado no comércio local e quando iam coletar castanha já estavam devendo, o que de certa maneira condicionava a comercialização dos produtos, ou seja, o controle dos comerciantes de castanha era muito forte e mesmo aqueles que se dedicavam à agricultura e retiravam a castanha apenas para a alimentação acabavam envolvidos nessa malha comercial. Havia ainda aquelas pessoas que vendiam a sua produção na palha, ou seja, antes de plantar a sua roça já estava comprando fiado no comércio local. Os castanhais municipais, eram abertos, todos os castanheiros fichados na prefeitura local podiam fazer a coleta da castanha. Esse representava a única renda anual dessas famílias. A castanha coletada nos castanhais livres poderia ser negociada com qualquer comerciante. Na memória de Seu Cícero, “...a gente podia entrar tirar castanha até 2 de abril e vender pra quem quiser, quando o governador era o Magalhães Barata. Ele era o pai dos pobres”.
5 Considerações finais:
Com a pesquisa e produção deste artigo conseguir alcançar os objetivos, propostos no projeto. As ferramentas teóricas e metodológicas da História Oral e da Memória deram-me os parâmetros necessários para a compreender o processo de extração da castanha as contradições existentes na relação de trabalho.
O Sudeste Paraense sempre foi conhecido como um espaço rico de recursos naturais, como uma floresta farta de espécies rentáveis, como a castanheira, o caucho, madeiras de lei, além pedras preciosas, e outras. Por centenas de anos essa região foi habitada apenas por grupos indígenas. Depois que essa fonte de riqueza natural passou a ser conhecida iniciou-se a exploração extrativista dessas riquezas, em especial, as drogas do sertão, o caucho, a castanha, as pedras e metais preciosos atraindo migrantes para a região, sendo que a maior parte das pessoas que vieram para cá era da Região Nordeste e do Estado do Goiás. Essa migração deu origem a um dos primeiros povoados dessa região, o Burgo Agrícola do Itacaiúnas, que deu origem a cidade de Marabá. O extrativismo da castanha possibilitou durante pelo menos cinco décadas do século passado (1920-1970) o enriquecimento de poucos e a exploração das pessoas que trabalhavam na coleta da castanha. As péssimas condições de vida e trabalho no interior dos castanhais, em conjunto com a má alimentação e as péssimas condições de higiene, tornavam os castanheiros mais vulneráveis as doenças tropicais como a malária, leishmaniose, pneumonia, tuberculose, etc. Além disso, havia muitas mortes em conseqüência da picada de animais peçonhentos. O contato entre etnias diferentes se deu de forma conflituosa, o que causou a morte de muita gente na mata da região. Assim muitas tribos indígenas foram dizimadas na corrida atrás da borracha e depois da castanha.
Observa-se dessa maneira que a relação harmoniosa existente entre índio e natureza aos pouco era substituída por conflitos e lutas com castanheiros, jagunços, levando à morte tribos inteiras. As áreas indígenas que possuíam grande concentração de castanheiras foram sendo ocupadas e transformadas em castanhais, posteriormente em fazendo de criação de gado. Os conflitos nos castanhais se estendiam, ocorrendo também entre donos de castanhais, que na guerra pela castanha, muitos não respeitavam as demarcações. A descoberta dessa riqueza produziu uma verdadeira guerra pelo lucro.
Nosso estudo nos mostrou ainda, que a política de aforamento e arrendamento de castanhais se transforma em arma política eficiente dos governantes estaduais e municipais, bem como das oligarquias para manter o controle político da região. O extrativismo da castanha favoreceu a formação de uma elite em torno da castanha que se apoiava na troca de favores entre si. A conseqüência disso foi à concentração de castanhais pelas oligarquias. Apesar das mazelas existentes no castanhal, resultado da relação de exploração, o extrativismo da castanha representou oportunidades de renda para as famílias humildes do Sudeste Paraense.
Uma das marcas da economia da castanha era o sistema de aviamento herdado da época da borracha. Este sistema consistia numa relação comercial entre donos de castanhais e castanheiro onde os coletores eram aviados comprando fiado os mantimentos necessários ao trabalho na safra da castanha e no final vendiam a castanha para o mesmo comerciante que lhe aviou. Assim o aviamento foi um dos meios que o sistema capitalista de produção, encontrou para se apropriar do excedente das riquezas produzidas pelos castanheiros. Ele se caracterizava ainda pela presença de elementos como parentesco e compadrio, o que possibilitava a espoliação ainda maior do trabalhador que normalmente ficava endividado. O endividamento do trabalhador era uma das formas utilizadas para mantê-lo sobre o domínio do comerciante. Este sistema contribuiu na manutenção e sustentação da estrutura social, política e econômica do Sudeste Paraense durante o extrativismo da castanha.
A economia da castanha se manteve baseada na troca de favores, favorecendo a formação de um poder oligárquico forte, onde algumas famílias enriqueceram-se explorando outras, aquelas que na estrutura social estavam em posição inferior, submissa, sendo apenas mão-de-obra, coletora de castanha, sem usufruir os lucros que o produto oferecia. Esta formação oligárquica se manteve no poder por mais ou menos meio século, dominando política e economicamente com os meios mais arcaicos possíveis para se apropriar dos poucos saldos de alguns castanheiros, assassinando-os após este ter feito acerto de contas com o barracão, no final da safra.
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FONTES ORAIS:
Cícero Lopes Dias, entrevistado em Marabá no dia 28/07/2005. Trabalhou nos castanhais da região a partir da década de 1940 até o final da década de 1970 e partir da década de 1980 deixou os castanhais e foi trabalhar nas firmas que prestava na época serviço a CVRD. Hoje é vive de uma pensão de um salário mínimo pago pelo INSS, em condições bem precárias.
José Cabral da Cruz (Zé Patrício) morador de São Domingos do Araguaia que foi entrevistado no dia 21/05/2005, pela equipe do PROINT.camponês migrante maranhense que veio para São Domingos do Araguaia no final da década de 1950.
Severino Antonio da Silva (Severinão) Entrevistado no dia 23/05/2005, em São Domingos do Araguaia. Na região foi castanheiro e camponês, quando começou a Guerrilha do Araguaia no final da década de 1960, o Exército obrigou-lhe a ser mateiro. Ele foi um dos mateiros que presenciou as atrocidades cometidas contra civis no Sudeste do Pará.
Antonio Severino da Silva, (filho de Severinão) camponês que foi entrevistado pelos pesquisadores do PROINT em São Domingos do Araguaia no dia 23/05/2005.
Raimundo Cabral Cruz, filho de camponês que veio para a Região trabalhar no extrativismo mineral e vegetal, foi garimpeiro de cristal e diamante, castanheiro e tropeiro, depois de assituar um centro no povoado de São Domingos das Latas retorna ao Maranhão para buscar a família, chegaram na região na década de 1950. Entrevistado pelos pesquisadores do PROINT em São Domingos do Araguaia em 23/05/2005.
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